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“A beleza da margem, à margem da beleza” – Prefeitura apreende exposição fotográfica e multa em R$ 17.103,80

Novembro de 2009
Censura e repressão em Belo Horizonte – Conheça a história da exposição/protesto “A beleza da margem, à margem da beleza”

Resumo do post:

O fotógrafo Rafael Lage, indignado com a repressão da polícia e dos fiscais contra os artesãos que expõe sua arte na Praça Sete de Belo Horizonte, articulou-se com os artesãos para fotografá-los e realizarem uma exposição/protesto na praça, evidenciando para a sociedade a beleza e riqueza daquele grupo cultural. Mesmo amparada pelo artigo 38 do Código de Posturas do Município e pelo artigo 5 da Constituição Federal, e assim como acontece com os artesãos cotidianamente, a intervenção foi alvo de repressão e foi apreendida pelos fiscais da prefeitura.

Partimos do pressuposto que vivemos em uma sociedade democrática e respiramos liberdade, mas será que isso é verdade? Você só descobre se é livre de verdade, quando tenta ser. Conheça esta história e tire suas próprias conclusões.

Meu nome é Rafael Lage, sou artesão, documentarista, fotógrafo e malabarista, e decidi me empoderar de uma questão política em minha cidade.

O “por quê” da exposição/protesto: 

Nodia 6 de novembro de 2009 presenciei uma sequência de cenas de abuso de poder cometido pela policia militar contra artesãos que expõem sua arte na praça Sete de Setembro, centro da cidade de Belo Horizonte. Eu estava sem a câmera fotográfica e não pude registrar os fatos.

Indignado com o que vi, decidi denunciar não a violência contra os artesãos e sim a beleza que perpassa a cultura que protagonizam, invisível para a maior parte da sociedade, que popularmente os conhece como “Hippies”.

Além do padrão de beleza hegemônico, amplamente difundido nos estereótipos midiáticos mostrados nas novelas e propagandas, que inspiram uma estética “limpa”, peles claras, cabelos lisos, bem cuidados, existem outros tantos padrões estéticos que passam despercebidos por nós –  tão acostumados a reproduzir padrões já estabelecidos, ou são alvo de preconceito e discriminação.

“E o belo foi tido como belo, eis o feio,

E o feio foi tido como feio, eis o belo”

Lao Tse

Inspirado por esse aforisma de Lao Tse, criei o título da exposição/protesto “A beleza da margem, à margem da beleza”. Meu sentimento era o de ressaltar a beleza deste grupo cultural situado nas margens de nossa sociedade, em contraposição ao padrão de beleza ditado pelo “establishment”.

Como as fotografias foram feitas:

Nos dias 7 e 11 de novembro de 2009, fui na praça Sete, expliquei meu propósito aos artesãos e todos concordaram em serem fotografados, já sabendo que a partir daquele registro realizaríamos uma intervenção naquele espaço urbano, onde eles expõe sua arte  há mais de 30 anos.

O local em questão, a praça Sete de Belo Horizonte, é um conhecido palco de manifestações politicas e artísticas da cidade. O fato de ali ser também o espaço que os artesãos utilizam para expor sua arte e palco dos abusos sofridos só reforçou a coerência da intervenção ocorrer naquele local.

Veja algumas das fotografias realizadas nestes dois dias:

                           

                  

A legitimidade:

Buscando assegurar-me da legitimidade e legalidade da exposição/protesto que realizaria, procurei a legislação vigente, conhecida como “Código de Posturas do Município” (conjunto de leis que regulam o uso de espaços públicos em determinado município), que no caso do município de Belo Horizonte, assegura o direito de realizar-se passeatas e manifestações, sem necessidade de pedir licenciamento aos órgãos competentes:

Art. 38 – O uso do logradouro público depende de prévio licenciamento, exceto passeata e manifestação popular.

Também busquei respaldo em nossa constituição federal:

Artigo 5 – paragrafo IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Inicio da intervenção:

Só pra constar, neste dia – 13 de novembro –  realizei a minha primeira foto de um policial. Eu tinha acabado de chegar na praça para realizar a exposição e estava acontecendo uma operação da policia contra os artesãos. De longe, vi um dos artesãos segurando uma câmera fotográfica e um policial tentando tomar da mão dele o equipamento. A situação ficou tensa, o policial veio pra tomar a minha câmera também e o cenário só se acalmou porque um jornalista que estava passando intercedeu, questionando o policial, que mudou rapidamente de atitude.

Esse artesão com a câmera é Moacir Gaspar, que também vinha tentando registrar os abusos. Nossa parceria continua ainda hoje e ele, assim como o fotógrafo Cyro Almeida, tem grande importância em todo este trabalho.

No dia 13 de novembro de 2009, cheguei na Praça Sete com as fotografias impressas e conversando com os artesãos, decidimos expor as fotografias no mesmo suporte que eles utilizam para expor sua arte: uma estrutura feita com canos de “PVC” e um pano. Juntos, começamos a construí-la:

                              

                              

Making of da intervenção – Fotos: Cyro Almeida

Estas imagens dão substância ao fato de que o processo de idealização e construção da exposição/protesto se deu de forma conjunta, entre a minha pessoa e os artesãos. Eu encontrava-me movido pela indignação e eles associaram-se a causa, levantando sua bandeira, cansados de tantos anos de repressão e invisibilidade social.

Quero destacar que em nenhum momento meu nome aparece na intervenção. A escrita só aparecia na exposição/protesto em seu título e num quadro de fotos com os seguintes trechos da constituição:

*Observação: Após a apreensão da exposição/protesto, Rafael continuou o trabalho no local, mas desta vez, empenhado em documentar os abusos cometidos pela prefeitura e pela policia. Ao longo de 3 anos, Rafael documentou 18 operações contra os artesãos, sendo que em praticamente todas elas, foi agredido ou impedido de registrar os abusos, o que o levou diversas vezes a corregedoria da policia e a Defensoria Pública de Minas Gerais para registrar os fatos. Mas em 2011 ele publicou um video onde prova com imagens, as denúncias que foram expostas neste quadro acima,  referente à apreensões ilegais de bens pessoais dos artesãos. Assista o vídeo aqui:  “A criminalização do artista – como se fabricam marginais em nosso país” . Este vídeo deu inicio à um processo de luta politica na cidade de Belo Horizonte, onde já foram realizada duas audiências públicas sobre o tema dos artesãos e uma terceira está para se realizar no dia 3 de maio de 2012.

A intervenção e seus objetivos:

-Intervir no cotidiano do cidadão e propor uma outra relação com a cidade;

-Provocar a reflexão sobre arte no espaço público e ação política;

-Chamar a atenção das pessoas para uma cultura invisível e marginalizada;

-Proporcionar a possibilidade do cidadão observar a fotografia e ao mesmo tempo observar o fotografado;

-Denunciar a repressão contra os artesãos;

-Retirar a arte da galeria e compartilhar com a sociedade diretamente.

                                        

                                        

Fotos: Cyro Almeida e Moacir Gaspar

Cabe aqui ressaltar que o principal objetivo da exposição só foi plenamente atingido com o efeito adverso que desencadeou, qual seja, sua repressão e apreensão. Embora considerando todos os aspectos legais que legitimavam a ação, eu não era ingênuo para subestimar o poder de repressão da prefeitura e obviamente eu já esperava que ela sofresse algum tipo de perseguição. Essa perseguição constituiu-se numa prova incontestável do preconceito contra a cultura dos artesãos e do desejo da prefeitura de abafar qualquer visibilidade sobre grupo. E esta repressão não tardou a acontecer…

A apreensão ilegal da exposição/protesto:

No dia 18 de novembro de 2009, um efetivo composto de policiais e fiscais da prefeitura foram especialmente destacados para a operação de apreensão da exposição. Após menos de uma semana de realização diária da intervenção na Praça Sete, quando eu havia terminado de colocar a última foto, eles chegaram. O chefe dos fiscais dirigiu-se a mim, muito irritado, e de modo agressivo ordenou que eu desmontasse a estrutura e fosse embora. Segundo ele eu estaria violando o Código de Posturas do Município em seu artigo 17. Vejamos o que diz este artigo:

Art. 17 – É proibida a instalação precária ou permanente de obstáculo físico ou de equipamento de qualquer natureza no passeio ou projetado sobre ele, salvo no caso de mobiliário urbano.

Eu então empreendi minha defesa: citei o próprio Código de Posturas fazendo referencia ao Artigo 38 que me autorizava a estar ali independente de licença ou autorização da prefeitura e lembrei a ele que aquela praça recebia intervenções como aquela semanalmente. Também citei a Constituição Federal em seu Artigo 5 (também já citado no texto acima) e ainda argumentei que ele deveria respeitar o “principio da proporcionalidade”, um conceito jurídico largamente utilizado em situações que envolvem o agente público e o cidadão em casos de possíveis infrações. Segundo este principio: “a severidade da sanção deve corresponder a maior ou menor gravidade da infração”.

Em outras palavras, o principio da proporcionalidade pode ser entendido assim: “ O princípio da proporcionalidade tem o objetivo de coibir excessos desarrazoados, por meio da aferição da compatibilidade entre os meios e os fins da atuação administrativa, para evitar restrições desnecessárias ou abusivas. Por força deste princípio, não é lícito à Administração Pública valer-se de medidas restritivas ou formular exigências aos particulares além daquilo que for estritamente necessário para a realização da finalidade pública almejada. Visa-se, com isso, a adequação entre os meios e os fins, vedando-se a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.”

Eu então acrescentei que estávamos em um quarteirão fechado, com um passeio de 8 metros de extensão de um lado ao outro. Considerando que a exposição/protesto se encontrava rente à parede e ocupava apenas 25 centímetros do passeio, estava claro que ela não obstruía a passagem das pessoas e que mesmo que ela tivesse uma proporção maior, ainda assim ele deveria respeitar o principio da proporcionalidade e analisar o custo da obstrução em comparação ao beneficio daquela intervenção para a sociedade.

O chefe dos fiscais, chamado Marcos Resende, nem respondeu aos meus argumentos e imediatamente ordenou aos seus subordinados que desmontassem a exposição/protesto e apreendessem todo o material. Eu percebi que o dialogo havia se encerrado e apenas pude pegar a câmera e documentar o fato:

 


Na prática, o artigo 17 do Código de Posturas do Município a que o chefe dos fiscais de referia é utilizado para regulamentar cavaletes, mostruários com finalidade comercial, lixo e entulhos deixados em via pública. Exposição = lixo???

Se você acha que esse texto está longo e que já viu absurdos suficientes, tenha paciência, respire fundo, estamos só começando…

O B.O. ao revés:

Eu então me dirigi ao Cabo Freitas, policial militar que dava apoio à operação. Disse a ele que estava me sentindo roubado, primeiro em meu direito como cidadão de protestar e manifestar minha opinião, segundo pelo material da exposição/protesto que estava sendo levado ilegalmente. Solicitei que ele mesmo registrasse um boletim de ocorrência contra o chefe dos fiscais. O Cabo Freitas se negou a registrar o boletim e disse em tom de ameaça que eu deveria me afastar, senão ele teria que tomar “providências”.

Quero deixar claro que em nenhum momento eu me alterei emocionalmente, pois por mais que eu considerasse a situação absurda, de certo modo eu já esperava por isso.

Enquanto desenrolavam-se os tramites da apreensão, percebi que o cabo Freitas e o chefe dos fiscais iniciaram uma conversa na qual pareciam preocupados. Em seguida, o cabo Freitas veio até mim e disse: “Olha, acompanha a gente que eu vou registrar o B.O.”.

Fui conduzido à delegacia num carro de policia, enquanto o Cabo Freitas e o chefe dos fiscais foram juntos na Kombi da prefeitura. Ao chegar na delegacia, fui informado que o boletim de ocorrência era contra mim. Isso mesmo, o chefe dos fiscais decidiu me acusar de difamação, por eu ter dito que ele havia “roubado” minhas fotografias. Eu então confirmei no depoimento a minha acusação e ainda a repeti em alto e bom tom para que Marcos Resende (chefe dos fiscais)  a ouvisse novamente.

Me levantei, fui em direção ao cabo Freitas e a Marcos Resende e disse-lhes que tinha vergonha de conhecer seres humanos como eles, que se destinavam à uma trama tão baixa como aquela. Fui beber água e quando voltei, o chefe dos fiscais veio me dizer que havia “retirado a queixa”, mas que ele poderia reabri-la a qualquer momento nos próximos seis meses.

Mais tarde, compreendi que esse é um recurso comum utilizado por fiscais da prefeitura e policiais quando fazem alguma besteira ou cometem uma irregularidade, como abuso de poder. A verdade é que estes funcionários gozam de um beneficio jurídico chamado “Fé Pública”. Segundo este instrumento, em caso de versões contraditórias, a opinião de um funcionário público tem maior peso frente à um juiz. Ou seja, você como simples cidadão não tem como provar um abuso de poder, a não ser que tenha um conjunto de provas, como vídeos ou testemunhas. Então estes funcionários mal intencionados sentem-se protegidos por este instrumento e fazem mal uso dele, utilizando a “fé pública” como ferramenta de coação. E o procedimento é sempre o mesmo, eles registram a queixa e a retiram em seguida, porque na verdade eles não querem que o processo jurídico se concretize, a única intenção é intimidar o cidadão. Pode-se ver um exemplo claro de coação por mal uso da fé pública no vídeo “A criminalização do Artista”, quando o gerente de regulação urbana dá voz de prisão a um cidadão indignado e ao chegar na delegacia ele retira a queixa.

Eu então me dirigi ao delegado da policia civil e solicitei a realização de um B.O. contra o fiscal e o policial militar. Mais uma vez, foi-me negado o direito de registrar o boletim.

O retorno à praça Sete:

Depois de 5 horas na delegacia, retornei à praça Sete e por acaso havia se iniciado uma outra manifestação de protesto no local. Tratava-se de uma associação que defendia os direitos dos aposentados e denunciavam nomes de deputados que votaram contra uma lei que lhes beneficiavam. Eles ocupavam um espaço absurdamente maior que o da exposição/protesto, além de possuírem mesas e outros banners. Eu então procurei o organizador e perguntei-lhe se ele possuía alguma autorização da prefeitura pra realizar aquele ato. O organizador riu de mim e disse que toda quarta feira eles vão à Praça Sete fazer aquela manifestação e obviamente nunca solicitaram nenhuma licença ou autorização, pois aquele era um direito básico de qualquer cidadão em uma democracia.

Veja a foto:

Outros exemplos de manifestações na praça Sete, um local consagrado à realização de protestos na cidade de Belo Horizonte:

  

E como termina essa história?

Recebi uma multa no valor de R$ 43,54 por “obstrução da via pública”. Por mim,teria me negado a pagar essa taxa, mas como a consequência seria a inscrição do meu nome na divida ativa do município e na época, eu participava de uma empresa e não queria prejudicar meus sócios, assenti em fazer o pagamento. Decidi me desligar da empresa num futuro próximo, para ter autonomia para tomar decisões sem prejudicar outras pessoas.

 

Então, fui na prefeitura e solicitei a guia para pagar a multa e receber as fotografias e a estrutura da exposição/protesto de volta. A atendente já sabia do fato, tratou-me mal e deixou-me esperando por duas horas. Por fim, entregou-me a seguinte guia de arrecadação no valor de R$ 17.103,80:

Bem razoável, não acham?

Reflexões:

Mesmo diante de toda esta sacanagem e desse mergulho ao submundo de uma institucionalidade podre, considero que foi uma experiência fantástica. Primeiro porque abriu meus olhos, lembram do que disse no inicio do texto? Você só vai saber se é livre de verdade, no dia em que tentar sê-lo. E em segundo, porque a exposição/protesto cumpriu sua função, pois mesmo estando amparada por direitos claros, transparentes, ela foi vitima de repressão e abuso de poder, obviamente pelo conteúdo de sua temática, que faz referência aos artesãos, o que na minha opinião  é prova incontestável do processo de repressão contra esta cultura. Além do mais, foram criados um fato jurídico e outro politico.

Mas talvez o mais importante tenha sido experimentar a violência institucional em minha própria pele e assim entender todo o assédio moral à que estão submetidos os artesãos naquele local. Pude assim entender com mais profundidade aquelas pessoas que eu estava documentando e também como era o “modus operandi” da prefeitura e da policia. De certo modo, me tornei um igual, igual aos artesãos, o que contribuiu para legitimar todas as minhas futuras ações no processo de luta politica que se iniciou com esta intervenção e que estão reproduzidas neste blog.

Aqui tem um link pro vídeo de um camarada que também descobriu na prática aonde termina sua liberdade segundo a visão do estado, vale  a pena: http://www.youtube.com/watch?v=KYclmLAXLmA

 

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