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Inventário Cultural “Malucos de Estrada”

Introdução ao conceito de Patrimônio Cultural Imaterial:

“A Unesco define como Patrimônio Cultural Imaterial ‘as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.’

O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.”

Fonte: Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

“Malucos de Estrada”: a reconfiguração do movimento hippie  e o surgimento de uma expressão cultural brasileira.

“Tupy or not tupy, that is the question”   (Oswald de Andrade, em Manifesto antropofágico).

Quem nunca se deparou, nas mais remotas esquinas, ruas ou praças da cidade, com esta figura de semblante forte, sentada na calçada, cabelos grandes ou dreadlocks, barba sem fazer, talvez alguma tatuagem estampada no braço, roupas leves, desbotadas ou coloridas, nas mãos um alicate e um arame… Em frente um pano estirado no chão contendo uma diversidade de artesanatos, onde abundam cores, contornos, linhas, arames, sementes, dentes, penas… Simplicidade e desprendimento. A mochila, a barraca e o violão atestam que está ali apenas de passagem…

As nossas referências comuns apressam-se em tachar esta figura, indolentemente, de “hippie”. Passamos apressados, nem atendemos ao seu chamado. Mas paira no ar uma aura de dúvida diante daquele universo alheio, estranho e inapreensível.

Será que trata-se realmente de um “hippie”? Mas será que ainda existem “hippies”, será que “sobreviveram” desde a década de 60?

Uma das formas mais coerentes de iniciar a reflexão sobre esta questão, acredito, é perguntando para ele mesmo se ele se reconhece como “hippie”. E uma das respostas mais frequentes que obtivemos ao realizar esta pergunta – no contexto da militância, pesquisa e documentação realizada pelo coletivo Beleza da Margem – é a de que ele não é um “hippie” e sim um “maluco de estrada” ou “maluco de br”.

Decerto não trata-se de um simples vendedor ambulante, nem apenas de um morador de rua, nem exclusivamente de um artesão, nem completamente de um viajante. Toda a rede de singularidades e sentidos tecida em torno dele, refletida em sua cosmovisão, valores, códigos, saberes, ideias e práticas, atesta que se trata do protagonista de uma expressão cultural complexa.

Mas porque há relevância em se lançar luz sobre esta expressão cultural, neste momento? Por que o reconhecimento e a reflexão acerca desta cultura se faz necessário?

A urgência e relevância em se lançar luz sobre esta cultura está em que sua “sobrevivência” e “integridade” tem sido seriamente ameaçada pela institucionalidade, em vários municípios, como em Belo Horizonte, que tem colocado amplas limitações para que o artesão exerça seu ofício em locais públicos. Nesta cidade, desde 2005, a prefeitura tem realizado operações constantes para retirar os artesãos dos locais onde expõem há décadas, operações estas que não se pautam apenas em apreensões dos artesanatos expostos, mas também das ferramentas, matérias-primas e pertences pessoais – tais como mochilas, documentos, roupas e outros (é interessante ressaltar que, enquanto um viajante nômade, a mochila e seu conteúdo frequentemente constitui tudo o que ele possui em termos de bens pessoais).

Este cenário desencadeou uma luta política, engendrada por artesãos e outros ativistas, que passaram a documentar em vídeo as violações e o abuso de poder contra esta cultura. As gravações foram encaminhadas ao Ministério Público e às corregedorias da Policia Militar e da Prefeitura de Belo Horizonte, tendo tais denúncias resultado em três audiências públicas. Diante da intransigência do município em reconhecer o direito a “existir” desta cultura, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, em nome dos artesãos, processa o município de Belo Horizonte através de uma Ação Civil Pública. Recentemente, em decisão inédita (e histórica) o juiz Geraldo Claret de Arantes concedeu liminar reconhecendo a liberdade de manifestação artística e o direito à cidade para os artesãos.

Mas esta é apenas uma batalha vencida. A guerra a ser travada em torno da situação dos “malucos de br” ainda está apenas começando. Além de que, de fato, trata-se de uma luta muito mais ampla. É antes de tudo uma luta para que vivamos de fato numa sociedade democrática de direito, que deve permitir a “coabitação”, o entrelaçamento e a troca, num mesmo território, de diferentes atores, cosmovisões, conhecimentos, saberes e interesses, que representam a mais radical expressão da criatividade e potencialidade do ser humano.

Como foi colocado, a expressão cultural tratada aqui ainda não se encontra consagrada/legitimada pelo establishment/instituições como integrante do arsenal da diversidade cultural brasileira, fato que pode ser corroborado, dentre outros fatores, pela postura marginal/contra-hegemônica de seus atores, pela invisibilidade social que sofre e pelo fato de haver certo desconhecimento por parte dos gestores públicos da realidade cultural sobre a qual atuam, principalmente quando nos referimos às expressões culturais não consagradas. De acordo com Jesús Martín-Barbero (Revista Observatório Itaú Cultural nº8 ):

“[…]Essas “cidadanias culturais” não somente inscrevem as “políticas de identidade” dentro da política de emancipação humana, como também repensam profundamente o próprio sentido da política, colocando em evidência até que ponto as instituições liberal democráticas ficaram pequenas para acolher as múltiplas figuras da diversidade cultural que tensionam e rompem as nossas sociedades justamente porque elas não cabem nessa institucionalidade” (Martín-Barbero)

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